sábado, 7 de fevereiro de 2009

Opinião de Hamilton Rodrigo Araújo Freire de Andrade -Sobre o caso Battisti

Quem lembra dos Documentos do Pentágono publicados pelo New York Times, em 1971? Trata-se de um relato absolutamente secreto e crítico do papel dos Estados Unidos na Indochina entre a 2ª Guerra Mundial e maio de 1968. Neles, estavam retratadas todas as farsas e manipulações dos Estados Unidos na guerra do Vietnã. Hannah Arendt, a grande filosofa liberal, num ensaio que deveria ser lido e relido por comunicadores, faz uma crítica devastadora ao que define como "arcana imperii" (os mistérios do governo) ao tratar do tema em A mentira na política (1).

"A veracidade nunca esteve entre as virtudes políticas, e mentiras sempre foram encaradas como instrumentos justificáveis nesses assuntos. Quem quer que reflita sob essas questões ficará surpreso pela pouca atenção que tem sido dada ao seu significado na nossa tradição de pensamento político e filosófico, por um lado, e por outro, pela natureza da nossa capacidade de negar em pensamento e palavras quaisquer que seja o caso. Essa capacidade atuante e agressiva é bem diferente de nossa passiva suscetibilidade em sermos vítimas de erros, ilusões, distorções de memória, e tudo que passa a ser culpado pelas falhas de nossos mecanismos sensuais e mentais".

Arandt escreveu essas palavras no contexto da crise de credibilidade que se instaurou no governo americano com a publicação dos Papéis do Pentágono. Na essência, condenava a distorção deliberada dos fatos pelo governo, ao esconder da sociedade a verdade sobre a guerra, e defendia a ação da sociedade para agir em defesa da liberdade. Afirmava: "Somos livres para reformar o mundo e começar algo novo". Cito as palavras de Arandt, conhecida pela sua veemente condenação a qualquer forma de totalitarismo, a propósito do caso Battisti. Há, por parte do governo italiano, uma deliberada tentativa de manipular os fatos ao exigir que o ex-militante de esquerda, acusado de cometer assassinatos, seja extraditado. O discurso é, à primeira vista, favorável a um dos pilares maiores da democracia: a aplicação da justiça. Encanta e mobiliza aos que veem a história de forma isolada ou se deixam seduzir pela realidade em preto e branco. Bons e maus, justos e criminosos, vítimas e carrascos e assim sucessivamente. Na verdade, o discurso do governo italiano não é autônomo. É, sim, o momento de um discurso maior. Aproveita-se da mobilização da guerra aberta ao terrorismo que se seguiu ao 11 de setembro, liderada por Bush (e que tem sido aceita sem questionamentos maiores inclusive por grande parte da esquerda), para camuflar uma crescente guinada autoritária. Testemunha desta realidade é a legislação que se propõe a transformar médicos em espiões, ao induzi-los a denunciar imigrantes clandestinos. Testemunha dessa realidade é o fato do governo alinhar-se com o que existe de sombrio em termos de racismo, de militarismo e manipulação de informação. Testemunha dessa realidade é a crescente pressão sobre a soberania brasileira.

Tudo isso, o STF deve levar em conta ao julgar o caso Battisti. Mas não é só o STF é a sociedade brasileira e seus representantes. O que está em jogo é mais do que o direito do Brasil dar asilo a um perseguido político. É rendição ou não a um discurso de aparências e um discurso calcado na realidade. Ao contrário dos romanos, o Brasil não tem uma história milenar, nem foi jamais um império mundi. Não registra nada semelhante à republica mista tão bem descrita pelo historiador Políbios nos primeiros 50 anos de ascensão do império, anteriores a era cristã, e que deu alicerce a uma república que tinha entre os seus grandes méritos o incentivo ao conflito entre a plebe e o senado para que as leis fossem legitimas e socialmente justas. E a virtù do respeito à constituição e autêntica aversão à corrupção. A lista de diferenças históricas é quase interminável, mas uma coisa é certa. No caso Battisti, o governo brasileiro está trabalhando a favor da história da democracia. E o governo italiano não. Aqui, por questionável que possa ser, houve uma anistia para os dois lados em confronto nos anos da ditadura militar. Na Itália, o embate com as organizações de esquerda na década de 70, embora o país vivesse numa democracia, nunca foi tema de uma anistia. São contextos diversos, mas a essência é a mesma: a distinção histórica entre o que é aparência e o que é realidade, o que é fato e o que é manipulação dos fatos. O abuso do conceito de verdade é a máscara que oculta a verdadeira face do caso Battisti. O que o governo italiano está fazendo é condenando o direito de asilo a que tem direito o militante em nome da razão da justiça. Sua atitude deve ser entendida em uma dimensão crítica da realidade italiana e mundial, no que se refere ao avanço do conservadorismo e às restrições à liberdade em nome do combate ao terrorismo, e não somente por um fato isolado. Vale lembrar que à época dos Papéis do Pentágono os EUA também era uma democracia. E que no curso da sua história bicentenária tinha libertado a Itália do fascismo. Em suma, a despeito dos impasses históricos, o respeito à verdade não é uma característica própria da política. Por isso, casos como os de Battisti precisam ser vistos à luz dada sua face oculta não da sua fase visível.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Extradição do ex-ativista Cesare Battisti

Ao comentar o futuro do processo de extradição do ex-ativista italiano Cesare Battisti, em curso no Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro decano da Corte, Celso de Mello, destacou que decisões anteriores do tribunal sobre casos assemelhados não excluem a possibilidade do STF anular o refúgio político concedido pelo governo brasileiro, em ato unilateral do Ministro da Justiça, Tarso Genro. "Não há incoerência alguma. O STF tem procedido a uma ampla reavaliação de sua jurisprudência em diversas matérias e dado passos significativos no sentido de alterar", afirmou Mello.

"O processo extradicional, como qualquer processo, tem conteúdo eminentemente dialético. Então há teses em conflito e caberá ao Supremo analisá-las", disse o ministro.

Mello explicou que, inicialmente, os ministros do STF terão que resolver uma questão preliminar, que consiste em saber até que ponto a lei brasileira, que dispõe sobre a concessão do refúgio, afeta ou não a competência constitucional do STF.

Somente se vencida esta questão os ministros poderiam entrar em uma análise de mérito sobre a situação de Battisti, que foi condenado pela Justiça italiana à prisão perpétua, acusado de ter cometido e ordenado quatro assassinatos entre 1977 e 1979, quando militava no grupo Proletários Armados pelo Comunismo (PAC).

Caberia então aos ministros avaliar se Battisti cometeu ou não atos terroristas, além de debater se o ato terrorista é ou não qualificável juridicamente como crime político.

"Se o STF entender que (o ato de Battisti) é qualificável (como crime político), não caberá extradição", assinalou Mello. "O terrorista não tem o tratamento privilegiado que a Constituição concede ao autor de criminalidade política. Não sendo (autor de crimes políticos), (Battisti) é passível de ser extraditado."

Mello não participará do julgamento da extradição de Battisti no STF, porque alegou impedimentos pessoais. Em 26 de agosto de 2004, em processo relatado por ele, o STF concedeu a extradição do chileno Maurício Hernández Norambuena, que tinha sido condenado em seu país de origem à prisão perpétua, ao ser apontado como autor, em 1991, do homicídio de um senador e do seqüestro do filho do dono do jornal El Mercúrio.

Os ministros entenderam, na oportunidade, que os delitos de Norambuena se classificavam como atos terroristas e não crimes políticos. Ressalvaram porém, que o Chile teria que converter a pena perpétua em detenção máxima de 30 anos, em respeito à vedação constitucional de prisão perpétua no Brasil.