terça-feira, 9 de dezembro de 2008

A ética de Espinoza

Baruch Espinosa nasceu em 1632 e faleceu em 1677. Amsterdã presenciou seu nascimento e Haia sua morte. Avesso ao poder, não ocupou cargos ou salões. Sua presença se faz notar em Kant, Hegel, Marx e Nietzsche: pensadores que abriram as portas à modernidade. Espinosa defendeu a liberdade de pensar e o direito de expressão, priorizando a crítica como fundamento à liberdade humana. A Ética, livro mais conhecido do filósofo, não se constitui em tratado a respeito da moral - como indica o título -, nem fala de deveres. A ontologia, a lógica e a antropologia constituem-se em fundamentos das três teses desse estranho livro: assegurar ao homem a liberdade, afastando-o da servidão às paixões; criticar moralistas que desconhecem a condição humana e, finalmente, evidenciar que as coisas singulares só podem ser apreendidas por intermédio da categoria da totalidade. A partir desses princípios, a Ética capta e estabelece o humano em um universo no qual inexiste o livre arbítrio, categoria cara aos que preferem enxergá-lo como fonte de erro e do pecado. Os moralistas, embriagados de falsos valores, exorcizam fantasmas; fantasiam a própria fantasia e, portanto, nunca chamam o Sol de Sol e a Lua de Lua e,assim, escamoteiam o verdadeiro problema ético com exercícios escolares de amor a Deus, à sociedade... Desse modo, encontram-se incapacitados para entender o homem e resolvem denegri-lo em nome de um céu de valores que desconhecem onde esteja e quem o criou.


Espinosa demonstra, à maneira dos geômetras, que as afecções humanas não devem ser ridicularizadas ou analisadas como desvios ou danações. Para ele, o apetite forma a essência dos indivíduos e estabelece similitudes ou diferenças. O ser humano é singularizado por sua forma de querer, de apetecer e desejar, que se objetiva por intermédio da alegria e da dor. Só os que compreendem o desenrolar geométrico da natureza poderão apreender a alegria, e o bem será o fio condutor de suas ações, já que o conveniente à razão convém também à virtude e, daí, depreendem que a felicidade deve ser compartilhada. O filosofar, para Espinosa, não é um meditar sobre a morte, ao contrário, é sempre uma reflexão sobre a vida. A Ética é substancialmente oposta a todo tipo de pensamento que considera a felicidade como agressão ou ofensa. Sob este aspecto, é substancialmente um livro que se opõe ao ressentimento celebrando a alegria: "o amor e o desejo podem ter excesso" (proposição XLIV).


Espinosa fala de um homem como ser corpóreo e carnal. Atendendo às leis da natureza o corpo-carne cria muitas possibilidades e, assim, espanta a própria alma com o ardor de seu desejo:


De êxtase e tremor banha-se a vista
ante a luminosa nádega opalescente,
a coxa, o sacro ventre, prometido
ao ofício de existir, e tudo mais que o corpo
resume de outra vida, mais florente,
em todos fomos terra, seiva e amor.

(Carlos Drummond de Andrade -
A metafísica do corpo).


Uma infinidade de coisas envolve nosso corpo. Esta multi plicidade o possibilita superar o conhecimento fenomênico que dele se tem. Situação semelhante à do pensamento que ultrapassa a consciência ao tentar explicá-lo. Ao discorrer sobre o homem como ser corpóreo, Espinosa tem como intuito mostrar que também o pensamento vai além da consciência e, de uma certa maneira, esta é enriquecida e por ele transformada. O corpo não é, portanto, cárcere da alma - promovedor do pecado - é um modo de extensão, atributo da divina substância. Corpo e Alma - "como amante unido à amada" - são partes do processo da autoprodução divina e, como tais, necessários.


Ardentemente desejamos. Mas o desejo nem sempre é realizado: caímos na frustração. O deleite escapa, permitindo que seu lugar seja ocupado pela ausência e pela tristeza. As impossibilidades ficam estabelecidas e truncam as relações amorosas. Abre-se, assim, o processo de transformação do amor em ódio. Amamos o objeto que nos atrai e não aceitamos ser repelidos. Se o somos, detectamos a possibilidade da existência do outro. Um outro que ao objeto desejado fascina e do seu amor se apropria. O outro é, sem dúvida, a figura central nas relações amorosas interditas. Não importa se esse outro seja apenas fruto do imaginário. O que importa, sim, é o seu existir no pensamento daquele que se sentiu repelido pelo objeto desejado. A presença do outro - real ou imaginário - faz nascer a inveja e o ciúme. Nesta última possibilidade, a imagem da amada funde-se à imagem do outro ou, mais precisamente, à determinadas partes de um corpo que se agiganta e acopla o objeto amado. Está formado o quadro implacável de associações de imagens que irá afastar, de uma vez por todas, o amor. Em seu lugar, assenta-se a crueldade, a cólera e um profundo desejo de vingança: o mal. Este será analisado por Espinosa não como uma escolha e sim como produto da frustração de um desejo. Do mesmo desejo que, fosse plenamente realizado, anunciaria o bem. Mas, a realização ou não dessa força imperiosa, o desejo, independe da vontade humana, e sua explicação deve ser investigada no processo de autoprodução da natureza. Portanto, o bem e o mal não são, em si, absolutos. Não se constituem em impérios. Ao ignorar os motivos que mobilizam seus gestos - não seria improvável -, muitos homens acreditam-se livres. Ilusão ironizada com certa mordacidade por Espinosa: "... o homem delirante, a mulher tagarela, a criança e numerosos outros do mesmo gênero, julgam falar em virtude da livre decisão da alma, enquanto que, todavia são impotentes para reter o impulso da fala" (Ética, p.181).


Ao longo da Ética, Espinosa discorre sobre causas deter minantes da individualidade; da vida como utilidade comum a todos. Demonstra, ainda, o valor que possui aquele que conhece, por meio destas causas, sua superioridade frente àqueles que, conduzidos pelas aparências, não têm consciência de si próprio. Portanto, desconhecem a verdadeira liberdade. O homem é um ser complexo. Sua racionalidade o envolve em distintas afecções. E, por mais esta razão, desperta o amor divino: Deus ama o homem. E o homem descobre como, através do amor intelectual, identifica-se com este Deus. Espinosa constrói um sistema de reflexos de imagens no qual Deus e homem se espelham mutuamente. Mas, esta construção arquitetada pelo filósofo não enche estádio ou igreja, ao contrário, irá esvaziá-los. Assim sendo, o Deus de que nos fala não será nunca o mesmo descrito pelos religiosos - produto da esperança e do medo. Para ele, um deus desta modalidade constitui-se em um mantenedor de tiranias que transformariam a coletividade humana em um conjunto de escravos. Como tais impedidos de perceberem a beleza do mundo e da vida. Para Espinosa, a origem do tormento humano é o sentimento de culpa imposto pela repressão religiosa e social. O homem atormentado sofre e, por sofrer, incompatibiliza-se com os outros - torna-se egoísta - destitui-se de sua humanidade. Aflito e doente este homem irá procurar explicações no misticismo e nos falsos profetas. Situação comum no momento atual que, com certeza, faria Espinosa sorrir.


O homem que vive racionalmente procura o bem e sua verdadeira utilidade. Mas uma utilidade comum, da qual todos podem desfrutar. Quem vive racionalmente sabe que a felicidade é possível por tratar-se de uma virtude, e não como querem os moralistas: um prêmio a ser obtido por aqueles que conseguiram refrear as paixões. Para Espinosa, ao contrário, a felicidade permite o fluir dos sentimentos. Esta inversão, na concepção do filósofo, sabota, na essência, as teses levantadas pelos moralistas. Além do mais, a Ética, ao descrever a força da vida, destrói a relação sadomasoquista construída pelo homem em relação à morte. Para Espinosa, ela é parte do processo de autoprodução da natureza e, como tal, deve ser encarada. Ao polir artesanalmente as lentes que às suas mãos chegavam, Espinosa estaria, também e, certamente, polindo o mundo e fortalecendo o homem. Trabalho árduo e difícil, já que exige talento e vocação. No entanto, sabemos que todas as coisas notáveis são tão difíceis quanto raras. E, assim, encerra Espinosa a ética do humano existir.

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