sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Etica X Direito II - texto da ministra do STJ Eliana Calmon Alves

A ÉTICA NO JUDICIÁRIO
ELIANA CALMON ALVES
Ministra do Superior Tribunal de Justiça
Neste momento histórico em que o Brasil, refletindo a Constituição de 1988, organiza-se como Estado Democrático de Direito, estão sendo questionadas e revistas as instituições, para adequarem-se aos novos tempos e às novas exigências. Nesse contexto de renovação, o Poder Judiciário ressalta-se pela importância da sua atuação no papel de reconstrução social.
Ao longo da República, o Poder Judiciário atravessou todas as crises institucionais sem mostrar-se internamente, destacando-se como o mais hermético dos três poderes, sem prestar contas de sua atuação, enquanto os seus componentes nutriam-se das prerrogativas institucionais.
O ponto de equilíbrio do modelo posto estava na relação de jus imperii da prestação jurisdicional, dentro da melhor perspectiva para o governo. A Constituição de 1988 provocou a mudança de concepção do Poder Judiciário, que se tornou fiador não só da ordem jurídica positivada nas leis da República, mas também o guardião dos direitos e das garantias outorgados pela nação politicamente organizada.
Com a nova roupagem constitucional, o Judiciário passou a ser questionado por todos: os demais Poderes, inconformados com a perda de parceria; os jurisdicionados, a exigir atuação mais efetiva; e os próprios magistrados, a, internamente, não mais se entenderem como no passado. E o Judiciário foi para as ruas, para a imprensa. Tornou-se alvo de verdades e mentiras, elogios e maus-tratos, aprovação e reprovação. Todos opinam e julgam os juízes.

A mudança provocada pela nova visão institucional da nação está levando os cidadãos à Justiça, o que exige rápida expansão da base, com o ingresso contínuo de novos magistrados para atender às urgentes reivindicações.
Nesse quadro constata-se que o Poder Judiciário perdeu o controle interno de seus componentes, enquanto os novos magistrados, despreparados para exercer atividade funcional de poder e de domínio, judicam, ignorando muitas vezes inteiramente o papel social de um julgador. Ninguém lhes ensinou o sentido social de um agente público que tem o poder de mandar para a prisão um semelhante; apreender bens ou seqüestrar valores do patrimônio alheio; de uma assentada, definir o destino de uma família, de uma empresa, de uma vida. Nesse seu agir, guia-se o magistrado pelos seus conhecimentos técnicos e pela sua biografia.
Porém, em outra perspectiva, ingressa na magistratura sabendo que, pela só nomeação, torna-se representante estatal, agente político, detentor de um poder de mando tanto maior quanto for a sua imaginação. Enquanto magistrado, ele é reverenciado pelos servidores, pelos advogados e pelos jurisdicionados, na medida em que temem todos o poder de sua pena. Para a mídia, é ele excelente fonte de notícia e, quanto mais extravagante o seu comportamento, mais destaque obtém na imprensa. Juntam-se a esses ingredientes as garantias institucionais que se refletem na pessoa do julgador. As garantias são indispensáveis para a independência e para a segurança da atividade judicante, embora seja o seu reflexo mal entendido pela exacerbação.
A partir do momento em que a atividade da magistratura passou a ser fiscalizada pelos cidadãos, dela se exige, como corolário inexorável da sua posição de condutora da paz social, equilíbrio e coerência comportamental, ingredientes institucionais indispensáveis. Isso explica a repercussão que causa na sociedade um comportamento aético por parte dos magistrados e a reprovação coletiva que se estende à classe quando ocorre violação às regras de comportamento.
Não se pode dizer que os magistrados de hoje são potencialmente menos qualificados que os do passado. O que existe, efetivamente, é a maior divulgação dos comportamentos transgressores, em conseqüência da quase onipresença dos meios de comunicação. Ademais, com o aumento do número de juízes e com o recrutamento feito por critérios exclusivamente técnicos, a arregimentação dos magistrados está cada vez mais vulnerável, na medida em que a sociedade brasileira apresenta esgarçamento ético por ninguém ignorado.
A chamada Reforma do Judiciário e a avaliação realizada por iniciativa do presidente do Supremo Tribunal Federal e do Ministério da Justiça priorizaram a celeridade da atividade judicante sem tecer um só comentário sobre a questão comportamental dos operadores do Direito.
O relatório sobre a Justiça brasileira apresentado pelo observador da ONU, Leandro Despouy, ateve-se a aspectos de atendimento aos direitos humanos, mas aqui e ali denuncia situações preocupantes de corrupção em concursos públicos, falta de critérios objetivos nas promoções, como também a contratação de familiares para cargos de confiança. São denúncias ligadas à ética de magistrados administradores, questão até hoje mantida na penumbra, sob o argumento de que propagá-la deixaria exposta a instituição.
Oficialmente, deposita-se no Conselho Nacional de Justiça a esperança de verem-se corrigidos, no âmbito do Judiciário, comportamentos equivocados, quando não tipificados como crime, contravenção ou ato de improbidade.

Os jornais trazem diuturnamente notícias sobre corrupção da magistratura, pela venda de sentenças, fraude em concursos, lobby para interferência nos resultados dos processos. O noticiário policial traz assassinatos, extorsões, agressões e outros delitos comuns, perpetrados por magistrados, promotores e advogados - profissionais a quem incumbe a Constituição aplicar a justiça. Quanto a esses episódios aguarda-se que a Lei Orgânica da Magistratura estabeleça disciplina punitiva e sancionatória que coíba a litigiosidade comportamental dos que são obrigados por lei a examinar e decidir sobre os desregramentos sociais.
Observada a importância que se dá à lei, prescrevendo-a como solução no controle da litigiosidade no seio da família judiciária, tenho entendimento de que nela não está a solução. É lógico que não ignoro a necessidade de atualizar a legislação disciplinadora do comportamento dos magistrados. É indispensável que a Lei Orgânica da Magistratura seja reescrita; é razoável que se espere do Conselho Nacional de Justiça, de alguma forma, o exercício de controle; é natural que a mídia denuncie os desmandos e os crimes praticados por "cidadãos acima de qualquer suspeita"; é certo, entretanto, que a defasagem legislativa não é a causa determinante da impunidade e da expansão do comportamento repudiável dos magistrados delinqüentes. Tanto é verdadeira a afirmação que essa legislação defeituosa e vetusta não impediu que, nos últimos cinco anos, o Poder Judiciário afastasse mais de uma dezena de juizes, condenasse outros tantos, anulasse processos inteiros porque eivados de nulidades absolutas, seqüestrasse valores e explodisse impérios de poder encastelados dentro do Judiciário. Tudo isso aconteceu pelo fato de ter havido uma mudança de postura dos protagonistas da atividade jurisdicional, a partir da reestruturação do Ministério Público.
O ponto de partida para uma mudança efetiva está na quebra de um modelo posto e repetido à exaustão, chamado, por Thomas Kuhn, de paradigma científico. Para se chegar a esse resultado não é suficiente a reprovação solitária de um ou dois membros da magistratura; não servirá de esteio o exemplo estóico de uma meia dúzia de magistrados admiráveis pelo caráter e pela correção. Quebrar paradigma significa erradicar um modelo que nos é cômodo e vantajoso; é erradicar o compadrio que nos facilita a vida, é assumir uma postura crítica a partir de nosso próprio agir; é, enfim, buscar essa dúvida, questionar diariamente nossas ações e omissões, cientes da responsabilidade que assumimos na magistratura.
A mudança caberá a nós, e só a nós, protagonistas da aplicação do Direito, na medida em que estejamos suficientes maduros para dizer em uma só voz: "VAMOS FAZER PARAR O MOINHO DE VENTO".

Um comentário:

Anônimo disse...

A idéia de um blog de estudante acho bem interessante pelo fato de percebermos como acontece a assimilação de resultados do acadêmico de direito diante do mundo.