terça-feira, 23 de setembro de 2008

Jusnaturalismo

JUSNATURALISMO

Formas da doutrina do direito natural


O jusnaturalismo é uma doutrina segundo a qual existe e pode ser conhecido um "direito natural", ou seja, um sistema de normas de conduta intersubjetiva diverso do sistema constituído pelas normas fixadas pelo Estado [direito positivo]. Este direito natural tem validade em si, é anterior e superior ao direito positivo e, em caso de conflito, é ele que deve prevalecer. O jusnaturalismo é por isso uma doutrina antitética à do "positivismo jurídico", segundo a qual só há um direito, aquele estabelecido pelo Estado, cuja validade independe de qualquer referência a valores éticos.
Na história da filosofia jurídico-política, aparecem pelo menos três versões fundamentais, também elas com suas variantes: a de uma lei estabelecida por vontade da divindade e por esta revelada aos homens; a de uma lei "natural" em sentido estrito, fisicamente co-natural a todos os seres animados à guisa de instinto; finalmente, a de uma lei ditada pela razão, especifica, portanto do homem que a encontra autonomamente dentro de si. Todas partilham, porém, da idéia comum de um sistema de normas logicamente anteriores e eticamente superiores às do Estado, diante de cujo poder fixam um limite intransponível: as normas jurídicas e a atividade política dos Estados, das sociedades e dos indivíduos que se oponham ao direito natural, qualquer que seja o modo como este for concebido, são consideradas pelas doutrinas jusnaturalistas como ilegítimas, podendo nessa condição ser desobedecidas pelos cidadãos.

Jusnaturalismo antigo e Jusnaturalismo medieval


A figura de Antígona, na tragédia homônima de Sófocles, converte-se como que num símbolo disso: ela se recusa a obedecer as ordens do rei, porque julga que, sendo ordens da autoridade política, não se podem sobrepor àquelas outras que são eternas, às ordens dos deuses. A afirmação da existência de algo "justo por natureza" que se contrapõe ao "justo por lei" é depois completada por vários sofistas, que já desde então entendem o "justo por natureza" de diversas maneiras, com conseqüências políticas diferentes em cada caso.
Conhecemos a sua doutrina sobre este ponto, sobretudo pela divulgação que Cícero dela fez em Roma, em páginas que exerceram uma influência decisiva no pensamento cristão dos primeiros séculos, no pensamento medieval e nas primeiras doutrinas jusnaturalistas modernas. Numa célebre passagem do seu livro De Republica, Cícero defende a existência de uma lei "verdadeira", conforme a razão, imutável e eterna, que não muda com os países e com os tempos e que o homem não pode violar sem renegar a própria natureza humana. Reproduzido e aceito por um dos padres da Igreja, Lactâncio, este excerto influenciou poderosamente o pensamento cristão de cultura latina, que, tal como já havia feito o de cultura grega no século III, acolheu a idéia de um direito natural ditado pela razão. Isto, porém, suscitou entre os padres da Igreja graves problemas de ordem teológica, tanto por causa da dificuldade de explicar a coexistência de uma lei natural com uma lei revelada, quanto porque a aceitação da existência de uma lei moral, autônoma no homem, punha em causa a necessidade da graça. Estas dificuldades afligiram, sobretudo o pensamento de Santo Agostinho, que, em épocas diferentes, assumiu a tal respeito atitudes muito diversas.
É característica do pensamento medieval a aceitação indiscriminada do jusnaturalismo em todas as suas versões, sem consciência da recíproca incompatibilidade existente entre elas. Ao lado da versão naturalista de Ulpiano e da versão racionalista de Cícero [bem como da que se devia a uma má interpretação de um diálogo tardio de Platão, de uma justiça imanente a todo universo como princípio da sua harmonia], a Idade Média desenvolveu a doutrina de um direito natural que se identificava com a lei revelada por Deus a Moisés e com o Evangelho. Esta foi, sobretudo obra de Graciano e dos seus comentaristas.
Quem pôs fim a esta confusão de idéias foi São Tomás de Aquino [século XIII], que entendeu como "lei natural" aquela fração da ordem imposta pela mente de Deus, governante do universo, que se acha presente na razão do homem: uma norma, portanto racional... Tomado tradicional, ele foi e ainda é, embora não tenha sido nunca declarado pela Igreja matéria de fé, o centro da doutrina moral e jurídico-politica católica. Contudo, dentro da teologia da Idade Média tardia, ele foi asperamente impugnado pelas correntes voluntaristas, que tiveram seu maior expoente em Guilherme de Ockham [século XIV]. Para estas correntes, o direito natural é, sem dúvida, ditado pela razão, mas a razão não é senão o meio que notifica ao homem a vontade de Deus, que pode, por conseguinte, modificar o direito natural com base no seu arbítrio; uma tese que foi reassumida e desenvolvida, no inicio, pela Reforma protestante.


Origem do Jusnaturalismo moderno


Na realidade, a doutrina tomista da lei natural não fazia senão repetir, embora inserindo-a em moldes teológicos, a doutrina estóico-ciceroniana da lei "verdadeira" enquanto racional.
Foi justamente em polêmica com o voluntarismo das alas extremas do calvinismo que nasceu a doutrina usualmente considerada como origem do jusnaturalismo moderno, a doutrina do holandês Hugo Grotius [Huig de Groot], enunciada no De jure belli ac pacis, de 1625.
No século XVII, a obra de Gtotius, graças também à sua atualidade como tratado sistemático de direito internacional e à fama que, como tal, obteve em toda a Europa, difundiu com grande eficácia a idéia de um direito "natural", ou seja, "não sobrenatural", um direito que tinha a sua fonte exclusiva de validade na sua conformidade com a razão humana. Este conceito do direito natural influiu profundamente na difusão 'da idéia da necessidade de lhe adequar o direito positivo e a constituição política dos Estados, bem como a da legitimidade da desobediência e dá resistência às leis e constituições que não se lhe adaptassem. Aliás, esta tendência se desenvolveu também à margem da influência direta do jusnaturalismo inspirado por Grotius ou dele derivado e, tendo se encontrado na Inglaterra 'com a antiga tradição constitucionalista do país, que já havia estabelecido limitações ao poder real, achou uma forma precisa nos Dois Tratados sobre o Governo Civil de Locke, escritos em tomo de 1680 e publicados em 1690. Além disso, o jusnaturalismo do século XVII, tanto quanto o fora para Grotius,foi também de grande importância, como fundamento teórico, para o direito internacional: quase todos os tratados de direito internacional daquele tempo têm por título: Do direito natural e das gentes.


Características do jusnaturalismo moderno


É Precisamente devido a esta sua característica que o jusnaturalismo moderno, isto é, o jusnaturalismo dos séculos XVII e molda profundamente as doutrinas políticas de tendência individualista e liberal, expondo com firmeza a necessidade do respeito por parte da autoridade política daqueles que são declarados direitos inatos do indivíduo.
O próprio Estado é considerado pelo jusnaturalismo moderno mais como obra voluntária dos indivíduos do que como instituição necessária por natureza, que era o que ensinava a maior parte das doutrinas clássicas e medievais.
Em algumas doutrinas jusnaturalistas modernas, o individualismo é levado até o ponto de se consideras a própria sociedade como efeito de um contrato entre os indivíduos; o contrato social se desdobraria assim em dois momentos, pacto de união e pacto de sujeição. Mas isto' é mais raro do que comumente se crê, porque, também entre os jusnaturalistas modernos, o estado de natureza é geralmente representado como uma forma de sociedade; mas uma sociedade tão precária e incerta que se torna conveniente sair dessa situação para fazer surgir uma instituição jurídico-política organizada.
Direitos inatos, estado de natureza e contrato social, conquanto diversamente entendidos pelos vários escritores, são os conceitos característicos do jusnaturalismo moderno; acham-se de tal modo presentes em todas as doutrinas do direito natural dos séculos XVII e XVIII, que se pode falar [na verdade, impropriamente] de uma "escola do direito natural". Isto permitiu que muitos reservassem a expressão jusnaturalismo para as doutrinas desse período histórico. E foi isto também que criou a opinião errônea de que idéia do direito natural nasceu e foi cultivada apenas a partir deste período, nomeadamente desde Grotius em diante.
O ideal jusnaturalista do século XVIII teve assim enormes resultados políticos: foi na doutrina do direito natural que se inspirou, conquanto confluíssem também outros elementos históricos e doutrinários, oriundos, sobretudo da tradição constitucionalista inglesa - a Declaração da Independência dos estados Unidos da América [1776], onde se afirma que todos os homens são possuidores de direitos inalienáveis, como o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade; e é de caráter genuinamente jusnaturalista a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão [1789] que constituiu um dos primeiros atos da Revolução Francesa e onde se proclamam igualmente como "direitos naturais", dentre outros, a liberdade, a igualdade e a propriedade.


O jusnaturalismo do século XIX


A idéia de um sistema racional e universal de normas [que se harmonizava com as tendências da cultura iluminista, tendente à racionalização e à sistematização de todos os aspectos da realidade e excludente das contribuições da tradição e da história, bem como de tudo aquilo que não parecesse ditado pela razão] se opunha de modo gritante à realidade da vida jurídica daquele tempo.
Sentia-se, por isso, uma forte necessidade de reformas legislativas que dessem ao direito principalmente certeza; o jusnaturalismo, com sua teoria de um direito absoluta e universalmente válido, porque ditado pela razão, era capaz de oferecer as bases doutrinais para uma reforma racional da legislação.
Com a promulgação dos códigos, principalmente do napoleônico, o jusnaturalismo exauria a sua função no momento mesmo em que celebrava o seu triunfo. Transposto o direito racional para o código, não se via nem se admitia outro direito senão este. O recurso a princípios ou normas extrínsecos ao sistema do direito positivo foi considerado ilegítimo. Negou-se até, tirante o código austríaco de 1811, que se pudesse recorrer ao direito natural em caso de lacuna do ordenamento jurídico positivo: triunfou o princípio característico do positivismo jurídico [ou seja, da posição oposta ao jusnaturalismo] de que, para qualquer caso, se pode sempre encontrar solução dentro do ordenamento jurídico do Estado.
O jusnaturalismo veio a cair, assim, no decorrer do século XIX, em total descrédito. Sobreviveu apenas na sua forma católica, baseada na doutrina das leis de São Tomás de Aquino, mas só no âmbito clerical, com uma finalidade conservadora e muitas vezes reacionária, servindo, sobretudo de instrumento de contestação da legitimidade do Estado liberal e constitucional. O adjetivo jusnaturalista é usado pelos juristas em sentido depreciativo, para indicas conceitos ou argumentos estranhos ao campo da juridicidade, não se entendendo mais por jurídico senão o que concerne ao direito positivo.


O jusnaturalismo contemporâneo


O jusnaturalismo despontou de novo depois da 2a Guerra Mundial, como reação ao estatismo dos regimes totalitários. Em grande parte, o fenômeno se verificou ainda no âmbito da cultura católica; mas também nos ambientes protestantes alemães e em medida bastante notável no mundo laico, a idéia do direito natural se apresentou de novo e, sobretudo como dique e limite ao poder do Estado. E típica a tal respeito a posição tomada por um dos maiores juristas alemães, Radbruch.
A forma em que hoje o jusnaturalismo parece ainda poder ter vitalidade é aquela em que ele se aproxima das doutrinas sociológicas e "realistas" do direito. Estas doutrinas rejeitam o positivismo jurídico por causa do seu formalismo, ou seja, pelo mesmo defeito que o historicismo romântico e idealista imputava ao jusnaturalismo.
O jusnaturalismo tem hoje diante de si unia função, talvez arriscada, mas que pode ser fecunda. O problema dos fins e dos limites desta função abrange, todavia, o problema da relação entre o juiz e a lei e, conseqüentemente, também o problema das relações entre o poder legislativo e o poder judiciário, na medida em que admitir que o juiz possa invocar um "direito natural", além de poder comprometer a certeza do direito, atribui aos órgãos judiciários o poder, em resumo, de criar o direito.

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