quinta-feira, 30 de outubro de 2008

A revolução da américa latina

Em entrevistas que deu na visita a Cuba e após seu retorno ao Brasil, o presidente Luiz Inácio fez duas afirmações carregadas de significado. Uma delas quanto à paixão de sua geração pela Revolução Cubana. Outra, ao considerar abominável o seqüestro de pessoas desarmadas e inocentes, como arma de luta política, pelas Farc, na Colômbia. Na aparente contradição dessas duas declarações, as transformações lentas e sofridas da América Latina estão propostas à nossa consciência dilacerada, bem como seus impasses e bloqueios.

A paixão romântica pela Revolução Cubana tem muito a ver com o fato de que não foi, originalmente, uma revolução comunista. Embora, na falta de melhor aparato conceitual, tenha adotado uma linguagem social e de esquerda para exprimir o anseio de justiça e de modernidade não só dos pobres, dos oprimidos, do povo, mas sobretudo dos setores esclarecidos da classe média e das elites. Os três irmãos Castro - Fidel, Raul e Ramón, com os quais conversei em Havana, em 1981 (guardo de Fidel um toco de seu charuto, amassado pelo peso de sua bota),- vêm de uma família de fazendeiros.

As revoluções latino-americanas têm sido e continuam sendo tardiamente anticoloniais, bloqueadas pelo passado que nos atormenta e engana. Da Revolução Cubana à in-revolução petista no Brasil, passando pelas Farc, na Colômbia, aprisionada na fortaleza da selva e da malária, o passado tem sido o pretexto enganador, o acerto de contas que não pode se consumar no vazio de historicidade. O tormento de uma falta de nexo entre a realidade social problemática, de um lado, e as ideologias com que se pretende compreendê-la, situá-la e superá-la, de outro, acompanha paralisias e derrotas políticas neste subcontinente de revoluções inacabadas, como as definiu o sociólogo colombiano Orlando Fals-Borda.

A Revolução Cubana, que depôs o ditador Fulgencio Batista, em 1959, não era uma revolução comunista nem Fidel Castro era comunista nem foi a revolução apoiada pelos comunistas. Uns dias antes da tomada do poder, Fidel falou em socialismo pela primeira vez. Ocorreu quando já era forte, em toda a América Latina, a resistência ao stalinismo, ao autoritarismo e ao dogmatismo dos partidos comunistas, sobretudo entre os intelectuais de esquerda. A simpatia e o afeto que aquela geração tinha pela Revolução Cubana não era, pois, adesão ao comunismo. Era rejeição ao imperialismo americano e a sua diplomacia, na América Latina mais conduzida pelo anticomunismo da CIA do que por efetivas orientações diplomáticas do Departamento de Estado.

A paixão romântica e juvenil pela Revolução Cubana decorria da esperança de que em Cuba estivesse ocorrendo uma revolução ao mesmo tempo antiimperialista e humanista, no marco da utopia da liberdade, que nos reconciliasse com os valores universais que um dia constituíram o cerne do pensamento da Revolução Francesa e, um século depois, do pensamento marxiano, completamente mutilado pela União Soviética e pelos partidos comunistas.

Mas a Revolução Cubana, como as revoluções latino-americanas, foi uma revolução tardia e descontextualizada, embora inevitável e necessária. Ocorreu numa época de polarização das nações pelo conflito da Guerra Fria, entre Estados Unidos e União Soviética. Quem não estava de um lado, tinha que estar de outro, pois do contrário não sobreviveria. As revoluções latino-americanas, revoluções nacionalistas, sem dúvida antiamericanas, mas, no fundo, pró-capitalistas, defrontaram-se com a diplomacia vesga das potências, especialmente dos Estados Unidos, que ainda concebiam o lucro como pilhagem.

Foi assim na Bolívia e foi assim na Guatemala, nos anos 1950, no Brasil, no Chile, na Argentina, no Uruguai, nos anos 60. Com Cuba não foi diferente. Não restou alternativa à Revolução Cubana senão a de abrigar-se na proteção política e econômica da União Soviética, agregar ao poder o Partido Comunista e sujeitar-se a uma dominação externa que colocava o país no miolo do conflito internacional. No fundo, a política externa americana, por meio do bloqueio econômico, fez de Cuba país de um socialismo rígido e o congelou. Isso não impediu que Cuba lograsse grandes avanços sociais, na educação, na saúde, na alimentação, mas impediu que seu socialismo fosse criativo e inovador.

Uma poderosa contribuição à sovietização da Revolução Cubana foi a da Igreja Católica, que também decretou seu bloqueio, um bloqueio religioso, congelando suas relações com Cuba. Durante anos, Cuba ficou sem um cardeal, como represália da Santa Sé, em boa parte, à prisão e deportação de padres espanhóis apanhados de armas nas mãos no desembarque americano na Baía dos Porcos, em 1961. Ainda que poupados do fuzilamento. Por muito tempo, as igrejas, fora do horário de missa, ficaram fechadas. Cuba tornara-se independente da Espanha em 1898, mas não se tornara independente do clero espanhol, que continuou a tutelar seu catolicismo de elite, já que esse país pobre, negro e mestiço é de certo modo um país do candomblé. Elite que, ao debandar para Miami, esvaziou as paróquias da ilha. Processo que só terminaria com a visita de João Paulo II a Cuba e a nomeação de um cardeal para Havana.

No outro pólo das considerações de Lula, as Farc, da Colômbia, representam outra expressão da política continental de bloqueio da liberdade e do querer político dos discordantes, dos insurgentes, dos diferentes. Outra sobrevivência da Guerra Fria e da herança de um país que não existe mais. Confinadas na selva, não interagem politicamente com a sociedade colombiana a não ser pelo terror. Sua ideologia de esquerda se derrete na prática de direita do forno úmido da selva, do isolamento, do narcotráfico, dos seqüestros e do terrorismo. Isso não é esquerda nem marxismo. Nelas, a dimensão propriamente política da insurgência foi castrada e perdeu-se na falta de horizontes de uma geração perdida. As Farc encarceram-se na selva para não ver a história passar.

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